sexta-feira, 21 de julho de 2023

A ÚLTIMA CASA DA RUA NEEDLESS (2022) - CATRIONA WARD


Em tempo: já vou avisando que essa resenha tem spoiler do livro, seja porque a intenção aqui é justamente guardar os detalhes, seja porque seria realmente desafiador contar essa trama sem revelar os inúmeros plot twists que a história apresenta ao longo do seu desenvolvimento.


A última casa da Rua Needless, da britânica Catriona Ward, lançado em 2022, é um daqueles livros que nos deixam com ressaca literária, porque a trama nos entrelaça de um jeito tão envolvente que é impossível abandoná-la, mesmo depois de finalizar a leitura. O plot da história é bastante singelo: uma garotinha desaparece misteriosamente aos 6 anos de idade (Laura Walters, Lulu) numa praia próxima à Rua Needless. Depois de 11 anos desse evento, acompanhamos a história de um homem solitário (Ted Bannerman) que vive em uma casa na pacata Rua Needless com sua gata (Olívia) e recebe visitas esporádicas de sua filha Lauren. Mas qual é a relação desse homem com o desaparecimento de Lulu?


Para um leitor vivaz, acostumado com Sherlock Holmes e Hercule Poirot, não é difícil deduzir que Ted tem um envolvimento com o desaparecimento de Laura - a quem ele se refere como “a menina do picolé”. Ele reside próximo ao local onde a garotinha desapareceu e, além disso, ela havia “visitado” o pátio da casa dele algumas horas antes do ocorrido. Também não passa despercebido ao leitor que Ted tem algum transtorno mental, já que o livro é contado em formato de POV (pontos de vista) e conseguimos mergulhar na confusa e atrasada mente de Ted durante vários dos seus POVs.



A trama dá a entender que existem outras crianças que também foram sequestradas e mortas por Ted e estão enterradas na floresta próxima à casa da rua Needless. Enterrados para virarem “deuses”, segundo deduzimos pelos confusos pensamentos de Ted. É preciso observar que tudo isso nunca é dito de forma literal, mas são as conclusões que extraímos dos pontos de vista de Lauren, de Didi, do próprio Ted e, o mais legal, da gata Olívia! Sim, a gata Olívia também tem seus pontos de vista no livro, o que torna tudo muito mais interessante. Ocorre que, assim como Lauren, Olívia também tem a perspectiva limitada pela casa de Ted, já que é um animal que tem fobia de sair à rua e, assim, as pistas que ela joga também tem lá as suas muitas limitações.

Esse raciocínio lógico e dedutivo - incentivado, em grande parte, por leituras policiais e pelos livros de horror - é logo confirmado quando descobrimos que as visitas esporádicas de Lauren à casa do pai não são, propriamente, visitas. Pouco a pouco, são apresentados elementos que nos permitem supor que Lauren, na verdade, é Laura Walters e vive em cativeiro na casa da rua Needless com Ted e sua gata Olívia. Aliás, esse cativeiro é até bastante cruel, pois, em certo ponto, descobrimos que Lauren vive, a maior parte do tempo, dentro de um refrigerador com alguns furos para a respiração, sendo torturada e alimentada apenas nos momentos em que Ted acha conveniente. 

Nesse ínterim, uma jovem se muda para a frente da casa de Ted. Logo descobrimos que trata-se de Didi, irmã de Lulu, que teve sua vida destruída desde o desaparecimento da garotinha, o que infelizmente, sabemos, não é tão incomum nos lares com crianças desaparecidas. Didi está obcecada por descobrir o paradeiro de Laura e, assim como nós leitores, desconfia de Ted e supõe que sua irmã foi sequestrada e está viva. Junto com ela, somos impulsionados a salvar Lulu das garras desse psicopata atroz. Aliás, psicopata parece ser a palavra certa para definir Ted até boa parte da história.



 


O problema é que a narrativa vai construindo um estranhamento no leitor. Aquela sensação de que alguma coisa não está se encaixando, sabem? Na maior parte do tempo, Ted é um ser humano que inspira pena e simpatia, exalando até mesmo uma certa ingenuidade, algo que parece não se enquadrar no perfil de um psicopata ou mesmo de um psicótico. É aí que o livro cresce muito pra mim, pois toda a leitura é movida por uma sensação de deslocamento, como se a narrativa tivesse nos conduzindo pra um lugar e, em contraponto, o nosso sentimento estivesse nos levando para outro completamente diferente. Uma espécie de intuição de que algo não está certo.


E então somos apresentados ao primeiro plot twist da história. Olívia não existe! A gata é, na verdade, uma personalidade criada por Lauren para fugir daquela situação traumática. Antigamente isso era chamado de Transtornos de Múltiplas Personalidades, hoje conhecido como Transtorno Dissociativo de Identidade, o famoso “TDI” (lembro de um livro que li na minha infância que tratava exatamente disso, Conte-me Seus Sonhos do Sidney Sheldon). 


É comum que vítimas de eventos muito traumáticos acabem “dissociando”, criando outras personalidades para lidar com o sofrimento, como se o cérebro criasse uma capa protetora, um verdadeiro instinto de sobrevivência. Essa revelação é uma surpresa e, então, acompanhamos Lauren convencendo sua personalidade Olívia a fugir, já que Lauren não tem o movimento das pernas por conta das agressões. 


 



Depois de ser encurralado numa situação envolvendo o “homem-besouro” - apelido que Ted deu ao seu psiquiatra - Ted se apressa em sair de casa, levando Lauren à floresta e é seguido por Didi. Daí se seguem três reviravoltas impressionantes e que mudam completamente a noção que temos da história. 


Primeiro, descobrimos que Didi estava com Lulu quando ela desapareceu. Didi estava com um namoradinho na cachoeira e, por conta da pouca idade da irmã e de sua negligência, Laura cai e bate a cabeça. Desmaiada, o seu corpo (se ela estava viva ou morta não sabemos) simplesmente some depois de Didi ouvir o barulho de um carro. Depois, descobrimos que quem pegou Laura foi a mãe de Ted (no presente já falecida), que era enfermeira em um hospital e que torturava crianças, suturando-as e costurando-as como se as tivesse operando, antes de matá-las! 


E, por último, descobrimos que Lauren, assim como Olívia (e Noturno, uma outra personalidade que também é um gato mais “selvagem” e que vive dentro da casa de Ted), também não existem! São todos personalidades do próprio Ted que, ele sim, tem Transtorno Dissociativo de Identidade, inaugurado a partir dos abusos e torturas perpetrados nele pela própria mãe! Infelizmente, Laura foi uma das vítimas da mãe de Ted e ela realmente não está vivendo em cativeiro. Infelizmente, Lulu está morta. Nesse confronto na floresta, Didi morre de uma picada de cobra e Ted, ferido por suas personalidades, é resgatado ("salvo") pelo vizinho que acaba criando com ele um laço de amizade verdadeira, preenchendo a vida vazia do pobre Ted. E, sim, o fim do livro é apressado do jeitinho desse parágrafo. Todo o desfecho acontece muito rápido, mas na minha opinião sem perder a qualidade.


Uma trama complexa e um suspense que vale a pena ler! Apesar de todas as premiações (o livro foi eleito um dos melhores thrillers psicológicos de horror escritos modernamente), não há como negar que se trata também de um drama. Uma narrativa triste envolvendo morte, perda, luto e os subterfúgios que somos obrigados a buscar para sobreviver aos traumas. 


Acima de tudo, a Última Casa da Rua Needless é sobre a complexidade de ser humano em um mundo onde nada é cartesiano e onde as explicações ainda são muito limitadas, como o capítulo de um livro que traz uma realidade inacessível para além do nosso ponto de vista.


domingo, 29 de maio de 2022

BUICK 8 (2002) - STEPHEN KING



Eu sempre me surpreendo com o talento do King de criar roteiros fantásticos a partir de acontecimentos absolutamente casuais. Stephen King tem uma capacidade absurda de personificar objetos inanimados, transformando-os em criaturas malignas, dotados de uma inteligência peculiar que nossos cérebros humanos e limitados não são capazes de entender.


Buick 8, foi iniciado antes de 1999, ano do conhecido acidente automobilístico de King, e finalizado em 2002 com a espantosa percepção de que o acidente principal do livro (cujo esboço já havia sido escrito antes do acidente) apresentava semelhanças com o dele próprio.

O livro conta a história de um Buick Roadmaster antigo “azul noite” que é apreendido após o motorista que o dirigia desaparecer misteriosamente no posto de gasolina. 





A Polícia da Pensilvânia, onde o Buick foi encontrado, decide deposita-lo em um galpão do Departamento D, após os policiais notarem uma série de curiosidades a respeito do carro. O Buick nada se parecia com um carro “comum” e ainda apresentava um zumbido estranho, quase uma vibração que atraia as pessoas que se aproximavam dele.


O livro acompanha os Policiais narrando a história do Buick - que está depositado há 25 anos no galpão B do Departamento - a Ned Wilcox, filho de Curtis Wilcox, um patrulheiro rodoviário morto em serviço após ser atropelado em um trágico (e misterioso?) acidente automobilístico.

O leitor é apresentado em cada capítulo, junto com Ned, às histórias que envolvem o Buick e o motivo pelo qual ele é guardado pelo Departamento D há tantos anos, com controle de temperatura e vigia constante.


(Spoiler) Entre zumbidos e clarões - que mais pareciam com fogos de artifício - descobrimos que o Buick é uma força maligna que, periodicamente, aspira para o seu mundo (um mundo alienígena) coisas, animais e pessoas que estejam ao seu alcance, a exemplo de Ennis Rafferty (policial do departamento) e Brian Lippy (um arruaceiro local).


Mas não para por aí. O Buick também expira coisas do seu próprio mundo pra o nosso, como besouros, morcegos, chegando a expelir em determinado momento inclusive um ET cor de rosa (É o jeitinho King de ser lovecraftiano. kkkk)


Durante praticamente todo o tempo, o livro nos conta sobre o passado, nos entregando, em seu ápice, um pouco da poderosa força do Buick no presente, como o momento em que ele se “apodera” de Ned e *quase* o carrega, junto com o Sargento Sandy, pro seu mundo.



No meio disso, há uma série de meandros familiares, ocasião em que, muito além do terror, King explora a relação de Ned com o pai, além das relações pessoais entre os próprios policiais e suas famílias. Esses elementos são a marca registrada do King em todos os seus livros e é isso que torna ele, na minha opinião, sempre genial.


No fim das contas, não há qualquer explicação sobre o misterioso Buick. De onde exatamente ele veio? Qual é a verdadeira força por trás do Buick? Essa força alienígena é realmente do mal? É automática? É pensante? Não sabemos.


A grande lição do livro é, portanto, muito menos sobrenatural. Como explica Stephen King, Buick 8 é sobre “o que os acontecimentos da vida têm de essencialmente indecifrável e como é impossível encontrar neles um significado coerente”.


Obs: vale referir que o livro é inspirado na música From a Buick 6 de Bob Dylan e que, segundo a página oficial de fãs do King no Brasil, está sendo adaptado para o cinema. Oremos!

domingo, 4 de outubro de 2020

ERASERHEAD - DAVID LYNCH (1977)


Depois de assistir Twin Peaks e me apaixonar pela estética da série, decidi mergulhar no surrealismo de Lynch e escolhi o primeiro filme da sua carreira.


Eraserhead consumiu 5 anos da vida de Lynch (e ao que parece também seu casamento na época). É um filme relativamente curto (1h30), gravado em preto e branco e absolutamente perturbador. Quem estiver interessado, é bom que se prepare para o desconforto do início ao fim.


O filme inicia com o protagonista caminhando em um cenário industrial (o que já é perturbador) e nos conta um recorte da vida de Henry Spencer que vive em um apartamento caótico, sujo e escuro. Spencer vai jantar na casa dos pais da namorada, Mary X, e descobre que se tornou pai (“nem sabemos se é um bebê", nas palavras de Mary X). Em seguida, já encontramos Mary X já morando no apartamento de Henry e a vemos alimentar o “bebê”, uma figura grotesca, deformada e totalmente perturbadora.


Os sons de choro e gorgolejos, durante toda a película, tornam a atmosfera muito perturbadora e desconfortável e pode se dizer o mesmo dos longos silêncios.


Mary X, surtada com o incessante choro da criança, deixa Henry no apartamento sozinho com o bebê e as cenas mais perturbadoras, sem dúvida, aparecem a partir desse ponto: o verme/espermatozóide que Henry encontra em sua caixa de correio e ganha vida própria, a relação sexual que Henry tem com sua sedutora vizinha enquanto o bebê chora, a cena em que Henry perde a cabeça (literalmente) e seu cérebro vira borracha de lápis após ser levado para uma fábrica por um menino e , por último, a menina “bochechuda” que Henry vê dentro do aquecedor dançando. SURREAL



O filme é realmente perturbador e foi amplamente criticado antes de virar “cult”, provando que Lynch produziu algo realmente a frente do seu tempo que só ganhou reconhecimento posteriormente. Kubrick teria confessado a Lynch que esse é o seu filme favorito, tanto que todo o elenco de Iluminado teve que assistir esse filme para que entendessem a atmosfera que Kubrick queria passar.


Segundo a crítica, as cenas também tiveram inspirações em Dali (surrealismo), em Gogol (O Nariz) e em Kafka (A Metamorfose). Engraçado que enquanto assistia o filme, Gogol me veio a mente diversas vezes e realmente há um elemento non sense - surrealista mesmo - que está muito presente em O Nariz.


Eraserhead, como em toda a obra vindoura do Lynch, é cheio de metáforas e simbologias (que permitem em torno de mil e duzentas interpretações rsrs) que possivelmente representam o medo da paternidade (Lynch recém havia tido uma filha na época), o retrato da vida na sociedade industrial, e a psique do homem industrial mesmo, tomado pelo sufocamento, pela infelicidade e pela inércia dessa sociedade doente.


Para os fãs de Twin Peaks (categoria a que recentemente pertenço) tem vááárias referências em Eraserhead que Lynch levou para Twin Peaks. Só pra citar algumas: o quadro da bomba atômica no quarto de Henry, assim como na sala de Gordon, a dança da personagem bochechuda que tem muita semelhança com cenas de Audrey,  a cena do espaço com a tripa que sai da boca de Henry (exatamente como descobrimos em TP que Bob é criado), o “poço” onde Henry e a vizinha fazem sexo e que é idêntico ao que fica na floresta de TP e que marca a fronteira com a Black Lodge.



Enfim, é uma obra fantástica porque entrega o que se propõe: medo, desconforto e angústia. Não quero assistir novamente, ao menos por enquanto, não porque tenha achado ruim, mas sim porque é pesado, difícil de digerir, angustiante, sem nada para contrabalancear (como acontece em TP). Mas é subversivo e imagino o quanto tenha sido inovador na época.


Me faz pensar que tem pessoas predestinadas a atravessarem fronteiras invisíveis. Gênios, visionários. E o onírico e o surrealismo de Lynch são prova disso. Lynch é prova viva disso!


Se o filme fosse uma pintura - e podemos fazer livremente essa conexão, já que Lynch também é artista plástico - seria, na minha leitura, uma mistura de Dali com Goya, arte sombria, arte pura!

domingo, 7 de junho de 2020

DRÁCULA - BRAM STOKER (1897)



Não há quem não tenha ouvido falar de Drácula, mesmo sem te-lo lido, e é impossível não ter visto ao menos uma das inúmeras adaptações cinematográficas, retratando o vampiro em incontáveis versões, dramáticas, aterrorizantes, sensuais ou apaixonadas. Pode escolher.

A verdade é que o romance surpreende por sua sutileza. Drácula é um romance epistolar, narrado através de cartas, diários e notícias, recurso que Bram Stoker utiliza com competência excepcional, acrescentando medidas exatas de suspense e mistério, misturando na narrativa temas de relevante interesse social, o que torna o conteúdo riquíssimo e, não por acaso, clássico.

A história foi inspirada em um sanguinário príncipe romeno, governador da Valáquia, Vlad Tepes (Dracul, da casa do dragão) que empalava suas vítimas e lutou contra o império otomano (há quem diga que lutou a favor também, segundo sua conveniência). Essa inspiração para Drácula é tratada mais detalhadamente no filme de Copolla, onde vemos um trechinho da verdadeira história de Vlad, embora no livro, obviamente, não há uma referência específica a ele.

Conhecemos o Conde Drácula inicialmente através do ponto de vista de Jonathan Harker que viaja a Transilvânia para mediar um negócio imobiliário com o Conde para a aquisição de uma propriedade em Londres. O único momento em que temos contato com Drácula, aliás, é na interação com Harker, onde o vampiro se apresenta com toda sua sensualidade e refinamento, alguém que, apesar de causar desconforto, é capaz de provocar interesse hipnotizante e manter longas conversas, no romper da noite, sem jamais entediar o interlocutor.

A partir disso, desde o momento em que Harker se dá conta de que está preso no castelo, o Conde Drácula passa a ser apenas uma presença em todas as cenas e nosso contato com o vampiro é apenas através do sentimento dos personagens, do horror, do medo, da tétrica fascinação provocada. É magistral o modo como Bram Stoker conta a história de Drácula, colocando o personagem no centro da história, sem que seja necessária sua participação direta.

Depois que Jonathan Harker foge do castelo e fica por muito tempo debilitado, a cena se transporta para as correspondências entre Mina Murray, noiva de Harker e Lucy Westenra, que vive em Whitby. É Lucy que insere na narrativa o Dr. John Seward, Quincey Morris e Arthur Holmwood, esse último que se torna Lord Godalming e que, afinal, conquistou o coração de Lucy, apesar de todos serem seus pretendentes.

Infelizmente Arthur e Lucy não conseguem viver sua história de amor, pois Lucy é mordida por Drácula e imediatamente inicia uma saga de debilidade e doença, até enfim morrer e se tornar também uma vampira. É o excêntrico Professor Abraham Van Helsing, chamado pelo Dr. Seward, que aplicando seus conhecimentos, consegue deixar sua alma livre para a eternidade.

Van Helsing assume o papel de personagem sagaz e detetivesco, praticamente um Sherlock Homes aposentado inserido na história do Drácula. É ele que nos esclarece os mitos que giram em torno das histórias de vampiro e que foram reunidos por Bram Stoker num excelente compêndio de como deter e matar um vampiro.

Por meio do professor ficamos sabendo que Drácula, como todo vampiro, (I) pode reviver quando consegue nutrir-se com o sangue dos vivos, (II) pode até rejuvenescer, (III) não projeta nenhuma sombra, não tem reflexo no espelho, (IV) pode se transformar num lobo, num morcego, (V) pode vir envolto numa névoa que ele mesmo cria (ainda que limitada, pois a névoa só pode ser criada em torno dele), (VI) sob os raios de luar, pode vir na forma de um pó fino, (VII) pode ficar minúsculo e deslizar por um espaço estreito como um fio de cabelo, (VIII) pode ver na escuridão.

Algumas limitações também são esclarecidas, pois segundo Van Helsing o vampiro "não é um ser da natureza, mesmo assim tem que obedecer algumas leis da natureza". "Ele não pode entrar pela primeira vez em algum lugar a menos que haja alguém da casa que o convide, embora depois possa vir quando quiser". "Seu poder acaba, como acontece com todas as coisas malignas, ao raiar do dia", embora no caso do livro Drácula possa andar durante o dia, mas com poderes extremamente limitados e enfraquecidos.

Ainda, "se ele não estiver no lugar ao qual pertence, só pode se transformar ao meio-dia, ou exatamente ao nascer do sol ou ao pôr do sol" e "só pode atravessar a correnteza durante a maré baixa ou a maré alta".  O alho e o crucifixo são confirmados como itens que afastam os vampiros. "Um ramo de rosa selvagem em seu caixão o impede de sair dali. Uma bala sagrada disparada no caixão mata-o, de forma que ele passa a ser um verdadeiro morto". Estaca transpassada, bala sagrada e cabeça cortada, ta aí três coisas que o matam definitivamente.

Após a morte de Lucy, o grupo reune-se em Londres, na clínica psiquiátrica do Dr. Seward, para vingar a morte de Lucy e livrar o mundo do Conde Drácula. É nesse local que o destino dos personagens se cruzam com o paciente Renfield, a porta de entrada de Drácula no local. Com Mina enfrentando o risco iminente de se tornar uma vampira, pois Drácula alimentou-se do seu sangue, o grupo - numa vibe total de sociedade do anel - viaja para Transilvânia para matar o vampiro, no que, ao final, são muito bem sucedidos, salvando o mundo do horror espalhado pelo Conde.

Parece singela, mas a história é extremamente profunda, com vários temas de interesse social. Mina e Lucy são mulheres que representam o estereótipo da época - belas, recatadas e do lar - enquanto a Lucy vampira, tal qual as três únicas moradoras do Castelo do Drácula, são mulheres com sexualidade agressiva, sensuais e cuja volúpia precisa ser detida. Ou seja, quando doces e comportadas, as mulheres são verdadeiros símbolos angelicais de bondade, contrastando com qualquer nuance de sexualidade, características de seres perigosos, um espectro do mal.

Há também outros temas abordados sutilmente por Bram Stoker, caso do próprio sangue que dizem estar associado aos vampiros, seres malignos, pelo contexto de doenças, como a sífilis, que assustavam muitas pessoas na época e que ainda não tinham cura. O respeito pela ciência, na figura de Van Helsing é também abordado de forma magistral. Por último, a aversão pelo estrangeiro é também tratada na figura de Drácula que pretende se mudar da Transilvânia para Londres, o que é visto como algo que deve ser combatido, já que eram os estrangeiros que, muitas vezes, levavam as doenças para a Inglaterra.
Tudo isso, somado ao formato da narrativa, ao teor da história, tornam o livro a obra-prima que é, o que explica todo o fascínio em torno de Bram Stoker e a grande repercussão que o livro teve ao longo de um século. É uma leitura que vale cada página e dispensa recomendações. 
quarta-feira, 13 de maio de 2020

DOM CASMURRO - MACHADO DE ASSIS (1899)


Li no Kindle

Dom Casmurro é um bom exemplo da incompetência do meu cérebro de reter histórias, por mais espetaculares que sejam. Li na adolescência, há no mínimo vinte anos atrás, e o máximo que me recordava eram os três personagens principais: Capitu, Bentinho e Escobar. Lembrava da discussão que, sazonalmente, percorre a internet, sobre a traição de Capitu e lembrava dos "olhos de ressaca". E só. 

Então, como alguém que tem uma boa dose de Alzheimer, a releitura de Dom Casmurro me pareceu mais uma nova obra do que uma revisitação. Meus sentimentos em relação ao Bentinho arrisco a dizer que foram inéditos, oscilando ao longo da narrativa, de uma certa dose de compaixão, um pouco de admiração, até atingir o ápice do ódio e da repulsa. Quem mais odeia o Bentinho?

Antes de dar as minhas primeiras impressões, preciso destacar três coisas que me tinham me escapado completamente à memória. Que o título 'Dom Casmurro' faz referência a uma alcunha colocada em Bentinho por um rapaz aleatório que, tendo o encontrado em um trem e lhe tentado ler alguns versos, ficou revoltado com o seu jeito calado e metido, emendando o "Dom" ironicamente porque Bentinho dormiu durante a leitura e, com isso, aparentou ares de fidalgo. Também me fugiu que os "olhos de ressaca" de Capitu são referência à ressaca do mar que, quando acontece, tem força suficiente para arrastar tudo que estiver pela frente. E não menos esquecido foi o fato de que o primeiro a chamar atenção para os olhos de Capitu foi José Dias, o agregado, insinuando que ela tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada. O olhar de Capitu, aliás, é a primeira grande obsessão de Bentinho, o que fica claro nas suas inúmeras referências de que "Capitu olhava para dentro de si mesma", de que "levantou o olhar, sem levantar os olhos".
Dom Casmurro, não é segredo para ninguém, é uma história de amor e ciúmes. Bentinho e Capitu se apaixonam desde a mais tenra idade. Por conta de uma promessa materna, Bentinho é enviado para um seminário e lá conhece Escobar, amizade que transcenderá o tempo, mas que será abalada [postumamente] pelo ciúmes desmedido de Bentinho.

É preciso que se diga o óbvio: Bentinho e Escobar abandonam o seminário e não se tornam padres. Bentinho casa com Capitu e Escobar com a melhor amiga dela, Sancha, iniciando uma convivência massiva em que vão se entrelaçar o amor, a amizade, a inveja, o ciúme e a repulsa. Sancha e Escobar tem uma filha. Bentinho e Capitu demoram mais, mas na sequência da história nasce Ezequiel, o filho tão esperado do casal, que ganha esse nome, como explica o próprio Bentinho, porque "era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta de compadrio".


Bentinho sempre teve uma personalidade extremamente ciumenta, o que é destacado em várias passagens, inclusive antes de se casar com Capitu. Nesses delírios de ciúmes, Bentinho costumava fantasiar diversas situações em que a Capitu o traía, pescando olhares com outros homens que o narrador, sendo o próprio Bentinho, não é isento suficientemente para nos convencer. Concordam?

A trama se desenrola somente ao final quando Escobar morre precocemente no mar, ironizando me pareceu a própria ressaca do mar que Capitu traz em seus olhos. É no velório que Bentinho vê a cena  que o transtorna: o abalo emocional de Capitu diante da morte de Escobar e, a partir de então, começa a fantasiar sobre uma possível traição entre a esposa e o amigo falecido.

É interessante notar que esse desequilíbrio acontece somente após a morte de Escobar, mas que antes disso, algumas peças já são jogadas para o leitor, como no dia que Bentinho volta cedo do teatro e encontra Escobar na sua casa, supostamente o procurando. Ou na vez em que Capitu é surpreendida, com o pensamento no mar, e emenda a história de uma certa economia surpresa que só foi possível com a ajuda de Escobar. Cenas que nos apresentam a intimidade velada entre Capitu e Escobar.

Essa fantasia delirante de Bentinho é agravada pelo desenvolvimento de Ezequiel que, inicialmente, tinha mania de imitar as pessoas (inclusive Escobar), mas que com o tempo vai se parecendo cada vez mais com o amigo falecido, no semblante e nos gestos, fato que é confirmado por Capitu ao afirmar, em dado momento, que a razão de tudo era "a casualidade da semelhança".

Bentinho, a partir daí, transforma essa fantasia em obsessão e vai se deteriorando como ser humano, especialmente no aspecto moral, o que fica claro quando ele, primeiro, pensa em se matar, e depois em matar o próprio filho envenenado, chegando muito próximo disso aliás. As suas relações vão sendo destruídas, começando com seu casamento com Capitu, até as relações com o filho que são totalmente encerradas quando, em viagem para a Europa, Bentinho deixa a família na Suíça e volta para o Brasil. O mesmo se pode dizer das relações com a mãe, José Dias e Tia Justina que acabam sendo relegados pelo isolamento de Bentinho no Engenho Velho.

Capitu nunca mais é vista. Ezequiel se encontra apenas mais uma vez com o pai, em uma visita que faz ao Brasil, antes de morrer de febre tifóide em uma viagem científica relacionada à arqueologia, custeada pelo próprio Bentinho que, para provar que não abandonou sua obsessão mesmo muitos anos depois, pensa em um derradeiro gesto de perversão: "antes lhe pegasse lepra".

Sobre a polêmica, Machado de Assis parece apresentar elementos na narrativa que deixam claro que a traição não passa de um delírio obsessivo de Bentinho. São exemplos desses elementos, a passagem em que o próprio Escobar "chegou a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha" ou a mais emblemática, quando Gurgel, pai de Sancha mostra um retrato da esposa e Bentinho conclui que, de fato, as feições eram semelhantes às de Capitu, "a testa principalmente e os olhos" acrescentando que "quanto ao gênio [...] pareciam irmãs". No desfecho Gurgel sacramenta "na vida há dessas semelhanças assim esquisitas", já antevendo para o leitor uma possível explicação entre a semelhança funesta de Ezequiel e Escobar no futuro.

Bentinho termina sozinho com um desfecho triste que ele mesmo desenhou e a impressão que fica para o leitor - para mim, ao menos ficou - foi que com ou sem traição, esse era o destino que o personagem merecia.

Que a terra não lhe seja leve!