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Então, como alguém que tem uma boa dose de Alzheimer, a releitura de Dom Casmurro me pareceu mais uma nova obra do que uma revisitação. Meus sentimentos em relação ao Bentinho arrisco a dizer que foram inéditos, oscilando ao longo da narrativa, de uma certa dose de compaixão, um pouco de admiração, até atingir o ápice do ódio e da repulsa. Quem mais odeia o Bentinho?
Antes de dar as minhas primeiras impressões, preciso destacar três coisas que me tinham me escapado completamente à memória. Que o título 'Dom Casmurro' faz referência a uma alcunha colocada em Bentinho por um rapaz aleatório que, tendo o encontrado em um trem e lhe tentado ler alguns versos, ficou revoltado com o seu jeito calado e metido, emendando o "Dom" ironicamente porque Bentinho dormiu durante a leitura e, com isso, aparentou ares de fidalgo. Também me fugiu que os "olhos de ressaca" de Capitu são referência à ressaca do mar que, quando acontece, tem força suficiente para arrastar tudo que estiver pela frente. E não menos esquecido foi o fato de que o primeiro a chamar atenção para os olhos de Capitu foi José Dias, o agregado, insinuando que ela tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada. O olhar de Capitu, aliás, é a primeira grande obsessão de Bentinho, o que fica claro nas suas inúmeras referências de que "Capitu olhava para dentro de si mesma", de que "levantou o olhar, sem levantar os olhos".
Dom Casmurro, não é segredo para ninguém, é uma história de amor e ciúmes. Bentinho e Capitu se apaixonam desde a mais tenra idade. Por conta de uma promessa materna, Bentinho é enviado para um seminário e lá conhece Escobar, amizade que transcenderá o tempo, mas que será abalada [postumamente] pelo ciúmes desmedido de Bentinho.
É preciso que se diga o óbvio: Bentinho e Escobar abandonam o seminário e não se tornam padres. Bentinho casa com Capitu e Escobar com a melhor amiga dela, Sancha, iniciando uma convivência massiva em que vão se entrelaçar o amor, a amizade, a inveja, o ciúme e a repulsa. Sancha e Escobar tem uma filha. Bentinho e Capitu demoram mais, mas na sequência da história nasce Ezequiel, o filho tão esperado do casal, que ganha esse nome, como explica o próprio Bentinho, porque "era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta de compadrio".
Bentinho sempre teve uma personalidade extremamente ciumenta, o que é destacado em várias passagens, inclusive antes de se casar com Capitu. Nesses delírios de ciúmes, Bentinho costumava fantasiar diversas situações em que a Capitu o traía, pescando olhares com outros homens que o narrador, sendo o próprio Bentinho, não é isento suficientemente para nos convencer. Concordam?
A trama se desenrola somente ao final quando Escobar morre precocemente no mar, ironizando me pareceu a própria ressaca do mar que Capitu traz em seus olhos. É no velório que Bentinho vê a cena que o transtorna: o abalo emocional de Capitu diante da morte de Escobar e, a partir de então, começa a fantasiar sobre uma possível traição entre a esposa e o amigo falecido.
É interessante notar que esse desequilíbrio acontece somente após a morte de Escobar, mas que antes disso, algumas peças já são jogadas para o leitor, como no dia que Bentinho volta cedo do teatro e encontra Escobar na sua casa, supostamente o procurando. Ou na vez em que Capitu é surpreendida, com o pensamento no mar, e emenda a história de uma certa economia surpresa que só foi possível com a ajuda de Escobar. Cenas que nos apresentam a intimidade velada entre Capitu e Escobar.
Essa fantasia delirante de Bentinho é agravada pelo desenvolvimento de Ezequiel que, inicialmente, tinha mania de imitar as pessoas (inclusive Escobar), mas que com o tempo vai se parecendo cada vez mais com o amigo falecido, no semblante e nos gestos, fato que é confirmado por Capitu ao afirmar, em dado momento, que a razão de tudo era "a casualidade da semelhança".
Bentinho, a partir daí, transforma essa fantasia em obsessão e vai se deteriorando como ser humano, especialmente no aspecto moral, o que fica claro quando ele, primeiro, pensa em se matar, e depois em matar o próprio filho envenenado, chegando muito próximo disso aliás. As suas relações vão sendo destruídas, começando com seu casamento com Capitu, até as relações com o filho que são totalmente encerradas quando, em viagem para a Europa, Bentinho deixa a família na Suíça e volta para o Brasil. O mesmo se pode dizer das relações com a mãe, José Dias e Tia Justina que acabam sendo relegados pelo isolamento de Bentinho no Engenho Velho.
Capitu nunca mais é vista. Ezequiel se encontra apenas mais uma vez com o pai, em uma visita que faz ao Brasil, antes de morrer de febre tifóide em uma viagem científica relacionada à arqueologia, custeada pelo próprio Bentinho que, para provar que não abandonou sua obsessão mesmo muitos anos depois, pensa em um derradeiro gesto de perversão: "antes lhe pegasse lepra".
Sobre a polêmica, Machado de Assis parece apresentar elementos na narrativa que deixam claro que a traição não passa de um delírio obsessivo de Bentinho. São exemplos desses elementos, a passagem em que o próprio Escobar "chegou a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha" ou a mais emblemática, quando Gurgel, pai de Sancha mostra um retrato da esposa e Bentinho conclui que, de fato, as feições eram semelhantes às de Capitu, "a testa principalmente e os olhos" acrescentando que "quanto ao gênio [...] pareciam irmãs". No desfecho Gurgel sacramenta "na vida há dessas semelhanças assim esquisitas", já antevendo para o leitor uma possível explicação entre a semelhança funesta de Ezequiel e Escobar no futuro.
Bentinho termina sozinho com um desfecho triste que ele mesmo desenhou e a impressão que fica para o leitor - para mim, ao menos ficou - foi que com ou sem traição, esse era o destino que o personagem merecia.
Que a terra não lhe seja leve!
Antes de dar as minhas primeiras impressões, preciso destacar três coisas que me tinham me escapado completamente à memória. Que o título 'Dom Casmurro' faz referência a uma alcunha colocada em Bentinho por um rapaz aleatório que, tendo o encontrado em um trem e lhe tentado ler alguns versos, ficou revoltado com o seu jeito calado e metido, emendando o "Dom" ironicamente porque Bentinho dormiu durante a leitura e, com isso, aparentou ares de fidalgo. Também me fugiu que os "olhos de ressaca" de Capitu são referência à ressaca do mar que, quando acontece, tem força suficiente para arrastar tudo que estiver pela frente. E não menos esquecido foi o fato de que o primeiro a chamar atenção para os olhos de Capitu foi José Dias, o agregado, insinuando que ela tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada. O olhar de Capitu, aliás, é a primeira grande obsessão de Bentinho, o que fica claro nas suas inúmeras referências de que "Capitu olhava para dentro de si mesma", de que "levantou o olhar, sem levantar os olhos".
Dom Casmurro, não é segredo para ninguém, é uma história de amor e ciúmes. Bentinho e Capitu se apaixonam desde a mais tenra idade. Por conta de uma promessa materna, Bentinho é enviado para um seminário e lá conhece Escobar, amizade que transcenderá o tempo, mas que será abalada [postumamente] pelo ciúmes desmedido de Bentinho.
É preciso que se diga o óbvio: Bentinho e Escobar abandonam o seminário e não se tornam padres. Bentinho casa com Capitu e Escobar com a melhor amiga dela, Sancha, iniciando uma convivência massiva em que vão se entrelaçar o amor, a amizade, a inveja, o ciúme e a repulsa. Sancha e Escobar tem uma filha. Bentinho e Capitu demoram mais, mas na sequência da história nasce Ezequiel, o filho tão esperado do casal, que ganha esse nome, como explica o próprio Bentinho, porque "era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta de compadrio".
Bentinho sempre teve uma personalidade extremamente ciumenta, o que é destacado em várias passagens, inclusive antes de se casar com Capitu. Nesses delírios de ciúmes, Bentinho costumava fantasiar diversas situações em que a Capitu o traía, pescando olhares com outros homens que o narrador, sendo o próprio Bentinho, não é isento suficientemente para nos convencer. Concordam?
A trama se desenrola somente ao final quando Escobar morre precocemente no mar, ironizando me pareceu a própria ressaca do mar que Capitu traz em seus olhos. É no velório que Bentinho vê a cena que o transtorna: o abalo emocional de Capitu diante da morte de Escobar e, a partir de então, começa a fantasiar sobre uma possível traição entre a esposa e o amigo falecido.
É interessante notar que esse desequilíbrio acontece somente após a morte de Escobar, mas que antes disso, algumas peças já são jogadas para o leitor, como no dia que Bentinho volta cedo do teatro e encontra Escobar na sua casa, supostamente o procurando. Ou na vez em que Capitu é surpreendida, com o pensamento no mar, e emenda a história de uma certa economia surpresa que só foi possível com a ajuda de Escobar. Cenas que nos apresentam a intimidade velada entre Capitu e Escobar.
Essa fantasia delirante de Bentinho é agravada pelo desenvolvimento de Ezequiel que, inicialmente, tinha mania de imitar as pessoas (inclusive Escobar), mas que com o tempo vai se parecendo cada vez mais com o amigo falecido, no semblante e nos gestos, fato que é confirmado por Capitu ao afirmar, em dado momento, que a razão de tudo era "a casualidade da semelhança".
Bentinho, a partir daí, transforma essa fantasia em obsessão e vai se deteriorando como ser humano, especialmente no aspecto moral, o que fica claro quando ele, primeiro, pensa em se matar, e depois em matar o próprio filho envenenado, chegando muito próximo disso aliás. As suas relações vão sendo destruídas, começando com seu casamento com Capitu, até as relações com o filho que são totalmente encerradas quando, em viagem para a Europa, Bentinho deixa a família na Suíça e volta para o Brasil. O mesmo se pode dizer das relações com a mãe, José Dias e Tia Justina que acabam sendo relegados pelo isolamento de Bentinho no Engenho Velho.
Capitu nunca mais é vista. Ezequiel se encontra apenas mais uma vez com o pai, em uma visita que faz ao Brasil, antes de morrer de febre tifóide em uma viagem científica relacionada à arqueologia, custeada pelo próprio Bentinho que, para provar que não abandonou sua obsessão mesmo muitos anos depois, pensa em um derradeiro gesto de perversão: "antes lhe pegasse lepra".
Sobre a polêmica, Machado de Assis parece apresentar elementos na narrativa que deixam claro que a traição não passa de um delírio obsessivo de Bentinho. São exemplos desses elementos, a passagem em que o próprio Escobar "chegou a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha" ou a mais emblemática, quando Gurgel, pai de Sancha mostra um retrato da esposa e Bentinho conclui que, de fato, as feições eram semelhantes às de Capitu, "a testa principalmente e os olhos" acrescentando que "quanto ao gênio [...] pareciam irmãs". No desfecho Gurgel sacramenta "na vida há dessas semelhanças assim esquisitas", já antevendo para o leitor uma possível explicação entre a semelhança funesta de Ezequiel e Escobar no futuro.
Bentinho termina sozinho com um desfecho triste que ele mesmo desenhou e a impressão que fica para o leitor - para mim, ao menos ficou - foi que com ou sem traição, esse era o destino que o personagem merecia.
Que a terra não lhe seja leve!
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