Impossível escrever sobre 'A Casa dos Espíritos' da escritora chilena Isabel Allende sem lembrar, ao menos minimamente, de 'Cem Anos de Solidão', clássico do escritor mexicano Gabriel Garcia Marquez que, a propósito, resenhei aqui. Me deparo, então, com a mesma dificuldade de transferir minhas impressões em palavras sobre esse livro extraordinário, emocionante e sensível.
A história da família Trueba se aproxima em muitos aspectos da família Buendía, com as peculiaridades de cada um dos autores e, principalmente, devido aos elementos históricos reais que acompanham a 'Casa dos Espíritos' já que Isabel é prima de Salvador Allende, Presidente do Chile que foi morto durante o golpe militar que, por décadas, instalou no Chile uma ditadura militar das mais violentas na história do país.
Assim como na obra de Gabo, são as mulheres de Isabel as personagens fortes e centrais da história. Úrsula Buendía, nesse caso, é substituída pela extraordinária Clara Del Valle que também acreditava, de certa forma, que o tempo dá volta redondas, refletindo que "se as loucuras se repetem na família, deve ser porque existe uma memória genética que impede que se percam no esquecimento". Alba, na terceira geração, vai chegar a mesma conclusão ao concluir que as ações vão se repetindo em círculos "em uma história infindável de dor, sangue e amor".
Embora Clara inaugure a história contada por Isabel, é Esteban Trueba que vai construir o caminho para que os personagens possam transitar. Esteban, um jovem determinado a enriquecer desde às primeiras passagens, e inicialmente predestinado a Rosa Del Valle, é surpreendido com a morte da jovem e, em um ímpeto de dor e revolta, se isola no campo, em Las Tres Marias, propriedade abandonada de sua família que, pouco a pouco, ele reconstrói.
A reflexão sobre o abismo social do país é tratado pela autora quando Pedro Segundo García, braço direito de Esteban em Las Tres Marias, alerta que um bom patrão é aquele que dá às pessoas pagamentos decentes, no lugar de casas de tijolos, litros de leite e papeizinhos cor-de rosa. Esteban, no entanto, já nessa época, demonstra sua personalidade autoritária e, por vezes, extremamente populista, desenhando o esboço do futuro Senador de direita que irá se tornar.
Em razão de uma rede de acontecimentos que iniciam com a morte da mãe, Esteban se casa com Clara, a caçula da família Del Valle. Clara que é médium e tem poderes premonitórios e telecinéticos assume o matriarcado da família Trueba, numa linda trajetória de amor e resignação, mas não menos de luta e força, ao lado de Férula (irmã de Esteban), Nana (a empregada histórica da família) e depois de sua filha Blanca e sua neta Alba, gerações de mulheres fortes, batalhadoras e revolucionárias.
É em Las Tres Marias, no entanto, que o destino dos personagens vai se entrelaçando. Depois de Clara dar à luz a Blanca e aos gêmeos Jaime e Nicolás, a vida dos Trueba vai tomando rumos inconciliáveis, que começam muito antes da formação da família com o estupro e a violação de Pancha García por Esteban Trueba, filha de Pedro García (o velho) e irmã de Pedro Segundo García. Pancha dá a luz ao filho que será o pai de Esteban García, o neto bastardo que assumirá o antagonismo central da obra.
É também na propriedade rural que Blanca e Pedro Terceiro García se apaixonam, desde a mais tenra idade, culminando no nascimento de Alba. E é em Las Tres Marias que Esteban Trueba conhece a prostituta Tránsito Soto e lhe empresta a quantia que depois será a pedra da salvação de Alba. Nesse mesmo local conhecemos Jean de Satigny, um francês com modos afeminados que se casará com Blanca (por pouquíssimo tempo) e assumirá a paternidade de Alba.
É também nessa propriedade, construída com a exploração do trabalho dos camponeses, especialmente da família García, que Esteban corta os dedos de Pedro Terceiro ao flagra-lo com Blanca e que Trueba selará, com uma agressão, o fim de seu relacionamento com Clara que, embora permaneça casada e morando na mesma casa, nunca mais lhe dirigirá a palavra.
Esteban García, o neto bastardo, pedirá dinheiro ao patrão para se aliar aos carabineiros, o que conseguiu com grande êxito já que, como Esteban afirmou, "entre ser delinquente e ser da polícia, é melhor ser policial, porque tem impunidade". É a partir desses acontecimentos centrais que a teia do destino de todos os personagens será definitivamente traçada.
A segunda parte da obra se passa no casarão dos Trueba, na cidade. É lá que Nicolás - que herdou o amor pelo sobrenatural da mãe - conhece Amanda, irmã de Miguel. Amanda que viverá um caso de amor com Jaime e Miguel, líder revolucionário que se tornará o grande amor de Alba. É no casarão que os projetos altruístas de Clara vão sendo colocados em prática, local onde serão hospedadas diversas pessoas, entre necessitados e intelectuais (como 'O Poeta', clara referência a Plano Neruda), e onde também, junto às irmãs Mora, Clara desenvolverá suas habilidades espíritas e telepáticas.
A morte em 'Casa dos Espíritos', assim como em 'Cem Anos de Solidão', é parte da vida. Diferente nesse ponto de Úrsula Buendia - que teve que fazer um grande esforço para morrer quando estiasse - Clara não lutou pela vida, "se desprendendo do mundo pouco a pouco, cada vez mais leve, mais transparente, mais alada" até se tornar um espírito que zelou, até o último momento, pela neta Alba e pelo marido Esteban Trueba.
A discussão política e social está em toda a obra de Isabel, desde o momento em que vemos a direita ascender ao poder no Chile - com a eleição de Esteban Trueba para Senador - até o momento em que essa mesma direita, movida pela eleição democrática dos socialistas, promove e endossa o golpe militar, referenciando a catástrofe política que foi tão atroz no Chile por muitas décadas.
É nesse contexto extremo que vemos a transformação de Esteban Trueba. Em uma metáfora excepcional, Esteban vai diminuindo e cumprindo a profecia de Férula que, no fim, seu corpo e sua alma se reduziriam ambos na mesma medida. Trueba, que encontra na neta Alba o verdadeiro sentido do afeto, vê com o golpe militar o esvaziamento de todo o seu discurso político e as falácias perpetradas por uma direita cega à realidade.
Quando Alba é presa pela polícia política da ditadura, é finalmente Esteban García, o neto bastardo e nunca reconhecido, que na condição de coronel a tortura e nela desconta toda a humilhação da rejeição sofrida. É nesse momento que Esteban Trueba desce do pedestal que ocupou durante todo o livro, vencido e cansado, sentindo que a vida finalmente lhe havia feito pagar por seus acessos de raiva, suas maldades e sua teimosia estúpida. Tránsito Solo, que enriqueceu a partir do dinheiro que ele lhe emprestou, paga sua dívida e, com suas artimanhas, consegue a liberação de Alba.
A morte chega suavemente para Esteban Trueba. Ao lado de Alba e do espírito de Clara, o Senador morre aos 90 anos, deixando pra trás um legado de dor, miséria, violência e opressão, uma herança que Alba, quem tem todos os motivos para alimentar, pretende não levar adiante, afinal, como a própria Alba concluiu: sua vingança "não seria senão outra parte do mesmo rito inexorável".
Fica a lição de Isabel Allende que encontra na ficção uma maneira de nos contar o que viveu, deixando para trás seus rancores porque, assim como Alba, entendeu que seu ofício é a vida e que sua missão não é prolongar o ódio. Disso não temos nenhuma dúvida, basta ver o afeto que exala de cada linha dessa obra incrível, dura e emocionante.
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