Perdi a conta das vezes que escolhi esse livro na prateleira e na primeira página já desisti da leitura. Penso que cada leitura tem seu momento e fico feliz que o tempo de 'Enquanto Agonizo' na minha vida finalmente tenha chegado - comecei o ano de 2020 escolhendo Faulkner e definitivamente não me arrependi. Fluiu e fez sentido, que obra espetacular!
Em 'Enquanto Agonizo' acompanhamos a saga da paupérrima família Bundren para enterrar a matriarca da família, Addie Brunden. Anse e seus cinco filhos - Darl, Cash, Jewel, Dewey Dell e Vardaman - partem do condado mítico de Yoknapatawpha (onde Faulker ambientou dezessete livros) até a cidade de Jefferson, cidade natal de Addie e onde ela supostamente gostaria de ser enterrada.
O livro é estruturado em Points of View, onde Faulker descortina, através do fluxo de consciência, o pensamento de cada um dos personagens. A trama vai se desenvolvendo crua, caótica, sem nenhum tipo de censura. Um cenário que se torna quase físico a medida em que a família avança, na devastação provocada pelas chuvas dos dias anteriores, para realizar o último desejo de Addie.
Mas, vamos lá, com toda a liberdade da ignorância de quem não entende nada de Faulkner, tampouco das entrelinhas contidas no estilo próprio desse autor, arrisco a dizer que esse livro me divertiu em alguma medida. Peço licença, então, pra resumir a história do livro - com spoiler, porque sim - de um jeito que, no futuro, eu consiga relembrar, nem que seja com uma certa vergonha de ter reduzido essa obra de maneira absolutamente imperdoável e devastadora.
Enquanto Addie agoniza, Cash constrói o caixão: a cena de Cash trabalhando dia e noite pra construir o caixão que Addie será levada para Jefferson é uma das melhores de todo o livro. O barulho do caixão sendo construindo, lixado, polido, ecoando por todo o ambiente, com Addie ainda viva dentro da casa, é uma das metáforas mais profundas da banalidade da vida. O mudo e agonizante sofrimento de Addie ganha relevo, não pela morte iminente, mas pela constatação de uma vida cansativa e dolorida. Como diria Chico: "pra que tanta vida, pra gente viver?"
A vida de Addie não vale três dólares: A mesquinhez de Anse que manda o filho preferido de Addie, Jewel, com Darl para terminar um serviço que lhes renderia 3 míseros dólares - sabendo que provavelmente não mais a veriam viva - provoca uma revolta quase involuntária no leitor. A relação abusiva de Anse com Addie, aliás, é tratada em várias passagens do livro, especialmente entre os vizinhos Vernon Tull e Cora que, várias vezes, refletem que, com a morte, Addie está finalmente se livrando de Anse Brunden.
O corpo de Addie é profanado, mas "ela quis assim": A desculpa de que tudo está sendo feito para cumprir a vontade de Addie é utilizada até o último segundo do livro. A cabeça de Addie é pregada por equívoco na hora de fechar o caixão, o corpo [naturalmente] começa a feder em razão do tempo que a família leva pra chegar a Jefferson numa carroça, o caixão cai no rio ("minha mãe é um peixe" diria Vardaman, meio profeta rsrs) para depois ser quase queimado no celeiro incendiado por Darl na cidade seguinte. Urubus sobrevoam o caixão de Addie durante vários momentos do trajeto. É uma saga: se essa véia quis tudo isso e não for pro céu, ninguém mais vai.
A família é destruída, as crises são expostas: A degradação da família que vai definhando física e moralmente durante o trajeto pra Jefferson é o ponto alto do livro. É aqui que, na minha opinião, o sofrimento se instala. Os fatos vão sendo jogados pro leitor com a naturalidade dos pensamentos e descobrimos que Dewey Dell está grávida, nem bem digerimos a revelação de que Jewel é filho de uma relação extraconjugal de Addie (e por isso o preferido). A saga de Dewey Dell buscando uma maneira de realizar um aborto, o abuso que ela sofre nessa caminhada, é uma das cenas mais doloridas de todo o livro, principalmente pela naturalidade com que isso é narrado. Algo como "é a vida". Soma-se a essa, a cena da prisão de Darl que, na loucura justificável, ateia fogo ao celeiro onde está o caixão da mãe e, então, é levado para Jackson.
A história é encerrada, e não poderia ser diferente, com a maior prova da miséria humana e da canalhice de Anse que, nem bem enterrou Addie, já aproveita a ida a cidade para colocar dentes ("Ele conseguiu os dentes"), criando um paradoxo asqueroso com todas as outras cenas que os filhos tiveram que sacrificar as parcas economias em favor da família: a venda do cavalo de Jewel ("Você quer dizer que tentou negociar meu cavalo?"), a extorsão de Dewey Dell pra entregar os dez dólares ("Onde você conseguiu dez dólares?"), a resistência de Anse em comprar uma pá pra enterrar Addie ("E você vai negar isso a ela?").
Tudo isso cria uma atmosfera nauseante, como se Faulkner obrigasse o leitor a encarar outra camada moral da natureza humana, jamais acessada pela nossa realidade, causando incômodo a cada página. É, de fato, um realismo tórrido que explora o sofrimento, a pobreza, a miséria e as relações familiares sem a polidez que utilizam, geralmente, os autores desse tipo de temática. Não à toa Enquanto Agonizo se tornou a obra-prima que é.
Leia, mas prepare-se para o desconforto.
Em 'Enquanto Agonizo' acompanhamos a saga da paupérrima família Bundren para enterrar a matriarca da família, Addie Brunden. Anse e seus cinco filhos - Darl, Cash, Jewel, Dewey Dell e Vardaman - partem do condado mítico de Yoknapatawpha (onde Faulker ambientou dezessete livros) até a cidade de Jefferson, cidade natal de Addie e onde ela supostamente gostaria de ser enterrada.
O livro é estruturado em Points of View, onde Faulker descortina, através do fluxo de consciência, o pensamento de cada um dos personagens. A trama vai se desenvolvendo crua, caótica, sem nenhum tipo de censura. Um cenário que se torna quase físico a medida em que a família avança, na devastação provocada pelas chuvas dos dias anteriores, para realizar o último desejo de Addie.
Mas, vamos lá, com toda a liberdade da ignorância de quem não entende nada de Faulkner, tampouco das entrelinhas contidas no estilo próprio desse autor, arrisco a dizer que esse livro me divertiu em alguma medida. Peço licença, então, pra resumir a história do livro - com spoiler, porque sim - de um jeito que, no futuro, eu consiga relembrar, nem que seja com uma certa vergonha de ter reduzido essa obra de maneira absolutamente imperdoável e devastadora.
Enquanto Addie agoniza, Cash constrói o caixão: a cena de Cash trabalhando dia e noite pra construir o caixão que Addie será levada para Jefferson é uma das melhores de todo o livro. O barulho do caixão sendo construindo, lixado, polido, ecoando por todo o ambiente, com Addie ainda viva dentro da casa, é uma das metáforas mais profundas da banalidade da vida. O mudo e agonizante sofrimento de Addie ganha relevo, não pela morte iminente, mas pela constatação de uma vida cansativa e dolorida. Como diria Chico: "pra que tanta vida, pra gente viver?"
A vida de Addie não vale três dólares: A mesquinhez de Anse que manda o filho preferido de Addie, Jewel, com Darl para terminar um serviço que lhes renderia 3 míseros dólares - sabendo que provavelmente não mais a veriam viva - provoca uma revolta quase involuntária no leitor. A relação abusiva de Anse com Addie, aliás, é tratada em várias passagens do livro, especialmente entre os vizinhos Vernon Tull e Cora que, várias vezes, refletem que, com a morte, Addie está finalmente se livrando de Anse Brunden.
O corpo de Addie é profanado, mas "ela quis assim": A desculpa de que tudo está sendo feito para cumprir a vontade de Addie é utilizada até o último segundo do livro. A cabeça de Addie é pregada por equívoco na hora de fechar o caixão, o corpo [naturalmente] começa a feder em razão do tempo que a família leva pra chegar a Jefferson numa carroça, o caixão cai no rio ("minha mãe é um peixe" diria Vardaman, meio profeta rsrs) para depois ser quase queimado no celeiro incendiado por Darl na cidade seguinte. Urubus sobrevoam o caixão de Addie durante vários momentos do trajeto. É uma saga: se essa véia quis tudo isso e não for pro céu, ninguém mais vai.
A história é encerrada, e não poderia ser diferente, com a maior prova da miséria humana e da canalhice de Anse que, nem bem enterrou Addie, já aproveita a ida a cidade para colocar dentes ("Ele conseguiu os dentes"), criando um paradoxo asqueroso com todas as outras cenas que os filhos tiveram que sacrificar as parcas economias em favor da família: a venda do cavalo de Jewel ("Você quer dizer que tentou negociar meu cavalo?"), a extorsão de Dewey Dell pra entregar os dez dólares ("Onde você conseguiu dez dólares?"), a resistência de Anse em comprar uma pá pra enterrar Addie ("E você vai negar isso a ela?").
Tudo isso cria uma atmosfera nauseante, como se Faulkner obrigasse o leitor a encarar outra camada moral da natureza humana, jamais acessada pela nossa realidade, causando incômodo a cada página. É, de fato, um realismo tórrido que explora o sofrimento, a pobreza, a miséria e as relações familiares sem a polidez que utilizam, geralmente, os autores desse tipo de temática. Não à toa Enquanto Agonizo se tornou a obra-prima que é.
Leia, mas prepare-se para o desconforto.
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