Em tempo: já vou avisando que essa resenha tem spoiler do livro, seja porque a intenção aqui é justamente guardar os detalhes, seja porque seria realmente desafiador contar essa trama sem revelar os inúmeros plot twists que a história apresenta ao longo do seu desenvolvimento.
A última casa da Rua Needless, da britânica Catriona Ward, lançado em 2022, é um daqueles livros que nos deixam com ressaca literária, porque a trama nos entrelaça de um jeito tão envolvente que é impossível abandoná-la, mesmo depois de finalizar a leitura. O plot da história é bastante singelo: uma garotinha desaparece misteriosamente aos 6 anos de idade (Laura Walters, Lulu) numa praia próxima à Rua Needless. Depois de 11 anos desse evento, acompanhamos a história de um homem solitário (Ted Bannerman) que vive em uma casa na pacata Rua Needless com sua gata (Olívia) e recebe visitas esporádicas de sua filha Lauren. Mas qual é a relação desse homem com o desaparecimento de Lulu?
Para um leitor vivaz, acostumado com Sherlock Holmes e Hercule Poirot, não é difícil deduzir que Ted tem um envolvimento com o desaparecimento de Laura - a quem ele se refere como “a menina do picolé”. Ele reside próximo ao local onde a garotinha desapareceu e, além disso, ela havia “visitado” o pátio da casa dele algumas horas antes do ocorrido. Também não passa despercebido ao leitor que Ted tem algum transtorno mental, já que o livro é contado em formato de POV (pontos de vista) e conseguimos mergulhar na confusa e atrasada mente de Ted durante vários dos seus POVs.
O problema é que a narrativa vai construindo um estranhamento no leitor. Aquela sensação de que alguma coisa não está se encaixando, sabem? Na maior parte do tempo, Ted é um ser humano que inspira pena e simpatia, exalando até mesmo uma certa ingenuidade, algo que parece não se enquadrar no perfil de um psicopata ou mesmo de um psicótico. É aí que o livro cresce muito pra mim, pois toda a leitura é movida por uma sensação de deslocamento, como se a narrativa tivesse nos conduzindo pra um lugar e, em contraponto, o nosso sentimento estivesse nos levando para outro completamente diferente. Uma espécie de intuição de que algo não está certo.
E então somos apresentados ao primeiro plot twist da história. Olívia não existe! A gata é, na verdade, uma personalidade criada por Lauren para fugir daquela situação traumática. Antigamente isso era chamado de Transtornos de Múltiplas Personalidades, hoje conhecido como Transtorno Dissociativo de Identidade, o famoso “TDI” (lembro de um livro que li na minha infância que tratava exatamente disso, Conte-me Seus Sonhos do Sidney Sheldon).
É comum que vítimas de eventos muito traumáticos acabem “dissociando”, criando outras personalidades para lidar com o sofrimento, como se o cérebro criasse uma capa protetora, um verdadeiro instinto de sobrevivência. Essa revelação é uma surpresa e, então, acompanhamos Lauren convencendo sua personalidade Olívia a fugir, já que Lauren não tem o movimento das pernas por conta das agressões.
Depois de ser encurralado numa situação envolvendo o “homem-besouro” - apelido que Ted deu ao seu psiquiatra - Ted se apressa em sair de casa, levando Lauren à floresta e é seguido por Didi. Daí se seguem três reviravoltas impressionantes e que mudam completamente a noção que temos da história.
Primeiro, descobrimos que Didi estava com Lulu quando ela desapareceu. Didi estava com um namoradinho na cachoeira e, por conta da pouca idade da irmã e de sua negligência, Laura cai e bate a cabeça. Desmaiada, o seu corpo (se ela estava viva ou morta não sabemos) simplesmente some depois de Didi ouvir o barulho de um carro. Depois, descobrimos que quem pegou Laura foi a mãe de Ted (no presente já falecida), que era enfermeira em um hospital e que torturava crianças, suturando-as e costurando-as como se as tivesse operando, antes de matá-las!
E, por último, descobrimos que Lauren, assim como Olívia (e Noturno, uma outra personalidade que também é um gato mais “selvagem” e que vive dentro da casa de Ted), também não existem! São todos personalidades do próprio Ted que, ele sim, tem Transtorno Dissociativo de Identidade, inaugurado a partir dos abusos e torturas perpetrados nele pela própria mãe! Infelizmente, Laura foi uma das vítimas da mãe de Ted e ela realmente não está vivendo em cativeiro. Infelizmente, Lulu está morta. Nesse confronto na floresta, Didi morre de uma picada de cobra e Ted, ferido por suas personalidades, é resgatado ("salvo") pelo vizinho que acaba criando com ele um laço de amizade verdadeira, preenchendo a vida vazia do pobre Ted. E, sim, o fim do livro é apressado do jeitinho desse parágrafo. Todo o desfecho acontece muito rápido, mas na minha opinião sem perder a qualidade.
Uma trama complexa e um suspense que vale a pena ler! Apesar de todas as premiações (o livro foi eleito um dos melhores thrillers psicológicos de horror escritos modernamente), não há como negar que se trata também de um drama. Uma narrativa triste envolvendo morte, perda, luto e os subterfúgios que somos obrigados a buscar para sobreviver aos traumas.
Acima de tudo, a Última Casa da Rua Needless é sobre a complexidade de ser humano em um mundo onde nada é cartesiano e onde as explicações ainda são muito limitadas, como o capítulo de um livro que traz uma realidade inacessível para além do nosso ponto de vista.