Resenhar uma obra é eternizar uma história que poderá ser revisitada, a qualquer tempo, transmudando a essência e o sentimento que cada página produziu. 'Cem Anos de Solidão' é um dos livros mais bonitos que já li e, apesar de ter uma simplicidade latente, é dotado de uma complexidade que torna a resenha tarefa árdua, quase impossível.
Resumir a obra-prima de Gabriel Garcia Marquez - mesmo que com a melhor intenção de lembrar dos detalhes no futuro - é reduzi-la. Mesmo assim, correndo o risco de cometer um pecado imperdoável, escolho "permanece-la", mantendo-a viva no pensamento pra que eu possa, sempre que quiser, revisitar, senão a própria obra, ao menos o impacto afetivo que senti com a história da família Buendía.
José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán iniciaram uma família sem precedentes, fundando uma cidade, liderando uma comunidade e, finalmente, se estabelecendo na fictícia Macondo com o ímpeto e a iniciativa das grandes personalidades do mundo. Foi assim que, se tornando cada vez mais prósperos, geraram seus filhos José Arcádio, Amaranta e Aureliano e, por último, Rebeca, a filha adotiva, dando início à complexa árvore genealógica dos Buendía.
É nessa época que começa a se destacar e se desenvolver a personagem feminina mais marcante do Gabo: Úrsula. A matriarca da família Buendía é MULHER por excelência, porque leva, como todas nós mulheres, o mundo inteiro nos ombros, desde a criação dos filhos, passando pela organização da casa, até o sustento financeiro da família. Enquanto José Arcádio se concentra em seus sonhos intangíveis, Úrsula viabiliza o sustento financeiro, fazendo animaizinhos de caramelo para sobreviver.
Só esteve mais próxima de sua fortaleza - marcante até seu último suspiro - a própria Amaranta, sua filha e, na quinta geração, Amaranta Úrsula, mas nenhuma delas com a capacidade de gerenciar passado e o futuro com a incrível força de Úrsula. Úrsula era forte, mas muito mais que isso, tinha capacidade de se reinventar no sofrimento, de suportar as intempéries da vida e de organizar, em um só ato, a bagunça afetiva da família Buendía.
Os personagens masculinos também merecem destaque pois são, em alguma medida, grandes visionários. Melancólicos e nostálgicos, o clã de homens Buendía vai construindo, ao longo da narrativa, uma história de luta, de fé e coragem. Todos lutam suas batalhas, sejam as propriamente ditas - como o Coronel Aureliano Buendía nas trinta e tantas guerras que participou - sejam elas afetivas, como Aureliano Segundo ao gerenciar o relacionamento com Fernanda e Petra Cortes ou como o próprio José Arcádio em sua ambição de se tornar um grande alquimista e cientista, impulsionado por outro grande homem da história, o cigano Melquíades.
A melancolia e a nostalgia, aliás, são traços predominantes da família Buendía que, no meio das lutas, da peste da insônia, do dilúvio, das guerras e das catástrofes, sobrevive em meio a tristeza da passagem do tempo, em meio a solidão - invocada pelo próprio nome da obra - e a esperança de dias melhores. É um misto de saudade do passado, com a esperança inerte do futuro.
Uma das características mais marcantes reside na forma como o Gabo personifica as COISAS. A casa dos Buendía e a própria Macondo são personagens construídos com uma imensa carga afetiva e tudo - as COISAS e as PESSOAS - vão se deteriorando, envelhecendo, perdendo cor, até que no final fica difícil encontrar algum resquício de dignidade. Dói.
O envelhecimento, por sinal, é tratado por Gabo com ares de realidade nua e crua, como quando ele descreve a velhice do cigano Melquíades - que previu o início e o fim dos Buendía - afirmando que ele "de repente passou a ser tratado como um desses bisavôs inúteis que perambulam feito sombras pelos dormitórios, arrastando os pés, recordando os bons tempos em voz alta, e de que ninguém cuida nem se lembra até o dia em que amanhecem mortos na cama". Mais adiante, o Coronel Aureliano Buendía sacramenta que "o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto honrado com a solidão". As próprias reflexões de Fernanda são carregadas de emoção ao constatar que, na velhice, estava "tão distante das melhores horas de sua vida". Mas, como Úrsula dizia tantas vezes e José Arcádio Segundo em certo momento reafirmou: "- queria o que? [...] o tempo passa".
Em contrapartida, a morte é vista como algo pragmático, cotidiano, consequência natural da vida. Isso fica bem claro quando Arcádio, ao caminhar para sua execução, "achou ridículo o formalismo da morte", pois "não se importava com a morte mas com a vida". O mesmo se vê quando "Úrsula teve que fazer um grande esforço para cumprir a promessa de morrer quanto estiasse" ou com a constatação do Coronel Aureliano de que "a gente não morre quando deve, mas quando pode".
Se envelhecer é sofrido, morrer é libertador e é uma consequência lógica, afinal estamos vivos. O que não dá pra admitir é que a velhice não se esgote com a morte, como refletiu José Arcádio ao enxergar, muitos anos depois, o fantasma de Prudêncio Aguilar que havia assassinado na juventude, "quando enfim o identificou, assombrado que os mortos também envelhecessem".
O divino e o sobrenatural, aliás, são lançados ao leitor de uma forma absolutamente inteligente. Todos os casos que envolvem esses temas - o fantasma de José Arcádio, de Prudêncio Aguilar, as aparições de Melquíades, a invisibilidade de José Arcádio [Segundo] no quarto dos pergaminhos, a ascensão aos céus da belíssima Remédios e tantas outras passagens fantásticas - tudo isso é jogado à avaliação do leitor, para que ele escolha se os fatos realmente aconteceram, já que sempre é possível extrair das cenas uma explicação racional.
As veladas críticas sociais e políticas são também de grande destaque na obra criada por Gabriel Garcia Marquez, desde a fraudulenta eleição que deu a vitória aos conservadores e serviu como o estopim da primeira guerra, até a constatação de que "não existe um ideal na vida que mereça tanta abjeção", frase dita pelo general Moncada ao Coronel Aureliano que em dado momento se dá conta de que "era mais fácil começar uma guerra do que terminá-la".
Tudo isso é narrado com bom-humor fino, nos fazer perceber a grande verdade por trás da história, dita e repetida por Úrsula tantas vezes de que "o tempo dá voltas redondas". É o que constata também Pilar Terneira quando o penúltimo Aureliano vem lhe contar que está apaixonado pela tia Amaranta Úrsula:
O bom-humor, diga-se de passagem, é utilizado com maestria por Gabo, na criança que finalmente nasce com rabo de porco, na descrição da própria comunidade Macondo que é tão pacífica que "não morre nem de morte natural" ou nas lembranças de Fernanda sobre as constatações de Aureliano [Segundo] a respeito de seus hábitos refinados de que "tantas colheres e garfos e tantas facas e colheirinhas não eram coisas de cristãos e sim de centopéias".
São tantos os elementos marcantes e fundamentais que, como eu disse, é impossível resumi-la, sob pena de reduzi-la a um amontoado de palavras. 'Cem Anos de Solidão' é um livro que precisa ser lido, sentido e saboreado, porque sacode, como o sopro que varreu Macondo do mapa, todos os nossos sentidos, nos deixando vulneráveis diante da previsibilidade da vida, do tempo e da solidão que, invariavelmente, nos acompanhará em algum momento da vida ou da morte.
'Cem Anos de Solidão' é, para alguns, uma alegoria do Gênesis, o início de tudo. Para outros, é uma ode à solidão e ao esquecimento. Prefiro que seja, para mim, tal qual a tela do pintor francês Nicolas Poussin, uma dança para a música do tempo. Uma obra de arte.
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