quarta-feira, 28 de março de 2018

GENTE POBRE (1846) - DOSTOIÉVSKI



Meu amor por Dostoiévski não tem limites! Que homem.. rsrs! Acabei de ler Gente Pobre, depois de uma ressaca literária extensa e interminável - achei que nunca mais fosse me recuperar, confesso.

Mas ressurgi das cinzas com esse livro curtinho e despretensioso do Dostô que, segundo pesquisei, é o seu primeiro romance, portanto, renasci pra vida com chave de ouro! 

É um romance epistolar: pra quem não sabe o que é epistolar, é um romance escrito por cartas (to fazendo cara de quem sempre soube, mas a Vivi, co-autora do blog, que teve que me explicar não há muito tempo isso, sabe que é mentira.. rsrs).

Nele acompanhamos um determinado período da vida de Makar Alexeievitch e Bárbara Alexeievna, dois personagens que querem representar exatamente o que o título propõe: pessoas com recursos limitadíssimos, vivendo em uma espécie de “cortiço” (uma “sucursal de Sodoma, nas palavras de Makar) no subúrbio de São Petesburgo.

Como o romance é todo escrito através de cartas trocadas entre os dois, é em doses homeopáticas que a vida de ambos vai se descortinando. Descobrimos que Makar é um homem mais velho, copista, funcionário público que tem uma personalidade apagada e leva uma vida medíocre. Makar tem Bárbara como uma parente distante e por isso se sente responsável por ela e a superprotege.

Em certo momento, por meio das memórias da personagem, acompanhamos a má-sorte de Bárbara, desde a decadência financeira familiar, até a morte de seu pai, a mudança para a casa de sua tia má, a paixão por Pokrovski que acabou morrendo, a morte da sua mãe e, ao final, a mudança para o local onde a encontramos, morando com Fédora, sua “colega de quarto”, uma pessoa que, do ponto de vista de Bárbara e Makar, é do bem e não mede esforços para ajudá-la.

As cartas trocadas entre ambos, em princípio, tem um teor de amor meio platônico, como se estivéssemos diante de um homem apaixonado (Makar) frente ao seu amor jovem e proibido (Bárbara). Não sei se isso é proposital, mas penso que isso se deve um pouco à literatura russa, apaixonada e entusiasmada, pois mesmo entre irmãos, pais e amigos (falando de outros romances Dostoiévski) encontramos essa relação melequenta calorosa e afetuosa ao extremo.

Se Gente Pobre fosse uma imagem seria, pra mim, um gráfico. Explico: Makar inicia o romance claramente POBRE, mas com uma certa dose de  orgulho. 
Nesse primeiro momento do “gráfico” Makar esbanja seu ordenado tipo eu sem dinheiro gastando o que não posso, inclusive enchendo Bárbara de presentes.
Logo a seguir, embarcamos na montanha russa financeira de Makar e chegamos à base do gráfico. Makar fica MAIS POBRE do que já é (como se isso fosse possível), se endivida, passa a beber, deixa de pagar o aluguel, falta ao trabalho, um desastre. 
Por fim, subimos novamente. Após um golpe de sorte, seu patrão o presenteia com 100 rublos (que, pelo contexto, parece ser um dinheiro considerável, já que meses e meses de atraso de aluguel somam apenas 20 rublos, então.. dá pra ter uma ideia). Makar sai esbanjando de novo: manda dinheiro pra Bárbara, paga o aluguel, compra umas roupinhas, umas botas (claramente eu descontrolada quando ganho dinheiro extra.. rsrs).

Bárbara já tem um histórico financeiro mais linear: É miserável e ponto. Tem a saúde fragilizada e por isso mal consegue trabalhar direito (ela e Fédora costuram pra fora) e, consequentemente, há dias em que não tem dinheiro nem pra comer. Sobrevive às custas do pouco que Makar lhe manda e, por vezes, especialmente na fase paupérrima de Makar, sentimos uma repulsa por Barbara, pois ela parece nesse momento um tanto “exploradora” de velhinhos. Mas ok, superamos.

Um aspecto que achei interessante é a construção psicológica que o Dostoiévski faz dos personagens. Makar vê o mundo ao seu redor conforme sua disponibilidade financeira. Se está passando por maus bocados, se diminui, se sente pequeno, acha que todos estão lhe humilhando, se entrega à depressão e às lamentações. Assim que retoma as rédeas de sua vida financeira, tudo muda, como se seus olhos fossem repentinamente descobertos: as pessoas passam a ser boas, ele passa a sentir um funcionário respeitável, não acredita que alguém possa ter a intenção de humilhá-lo com este ou aquele comentário. Tudo são flores.

É muito legal por essa ótica ver como nossa visão do mundo e das pessoas é afetadas por nossos conflitos. Se algo nos perturba, acabamos como Makar, transportando isso para os nossos relacionamentos, nosso trabalho e nossa vida cotidiana.

A narrativa do Dostô também é algo que me chamou atenção - o peso do ambiente de miséria é transpassado para fora dos livros e quase nos sufoca. É triste, mas ao mesmo tempo perturbador e nauseante. Nos faz questionar e refletir se criamos as oportunidades e os fracassos ou se eles estão fora do nosso controle.

Dostoiévski, através de Makar, faz duras críticas à desigualdade social, por diversas vezes questionando a lógica do universo em que para alguns é destinada a miséria (sem que eles nada façam pra isso) e para outros é reservada a abundância, sem que eles saibam, muitas vezes, aproveita-la. Mais ou menos como aquele ditado: "Deus dá asas para quem não sabe voar".

Ao cabo de muito refletir sobre a justiça das coisas, não chego a compreender como é que uns ainda no ventre da mãe estão destinados a serem felizes por toda a vida, ao passo que outros são atirados para a roda e só conhecem tribulações durante todo o tempo que se demoram por este mundo de Cristo! E, entretanto, a vida é isto, e às vezes até qualquer imbecil Ivanuchka é protegido pela sorte. Tu, imbecil Ivanuchka - diz o destino - tira quanto puderes do bolso do teu pai, come, bebe e diverte-te. Mas tu, e tu, e tu, fazei boca, que não fostes julgados merecedores de melhor sorte. [Makar]

Forte né? Chega a doer. Outras reflexões menos impactantes (mas não menos importantes) são encontradas em várias passagens. Em certa altura Makar diz, citando um colega, que “a maior virtude cívica é ganhar dinheiro” e que “não devemos nos tornar pesados para ninguém”. Em outro momento, ele diz que “se todos fossem escritores, quem haveria se ser copista?”.

Bem, no fim da história, Bárbara se casa com o Senhor Buikov, um frequentador da casa de sua tia e um homem rico, porém (o pouco que nos é passado) extremamente autoritário. Barbara encontra esperança nesse casamento como solução para fugir da situação miserável e sofredora que se encontra (lembrando que estamos falando de 1800 e guaraná de rolha, ok? Sem julgamentos). Makar desolado, diante da iminência desse acontecimento, escreve a sua última carta.

Opa. Queria fazer só um resuminho, mas virou textão. So sorry. Mas com o Dostô é sempre assim: ele sempre nos leva a reflexões profundas, analisando o ser humano em seu íntimo com suas fraquezas. E nesse livro despretensioso, seu primeiro, não poderia ser diferente.

Gente Pobre, aparentemente curtinho e singelo, é simplesmente arrebatador.

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